27.8.15

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Então é assim que começam os dias que não amanhecem: uma heresia contra o tempo ou uma heresia do tempo contra nós, sempre o mais provável. No cimo dos telhados partidos, o sol especula os seus próprios raios com um espanto renovado e sombrio, como alguém que olhasse para as suas mãos e os seus braços pela primeira vez e nada neles encontrasse mais de si. Também os olhos têm agora as mesmas regiões alagadiças avistadas nos mais interditos espaços do corpo. Em exultação e glória, entre a miséria e a festa da vida, também esses lagos desejam apenas adormecer e engolir todo o barco que nele queira ainda atravessar-se. Os fios de cabelo parecem crescer mais rápido para poderem dar a volta à nuca ou simplesmente atingirem a mortificação do chão e esconderem, por fim, o rosto, abençoando-o com a escuridão. Como a mulher japonesa, os dias passam a ser o seu abrigo dos espíritos, das árvores infindas, das histórias dos outros. Nada mais a tenta a não ser respirar e viver, preparar as parcas refeições, ler junto a uma lâmpada ardente e adormecer. Observa os seus olhos pelo canto da faca e volta a guardá-la num ápice. Ver não adianta. Os seus olhos ficaram para trás, embora o vento os queira empurrar, como ao anjo. Mas nem o vento tem essa força. Despe-se de palavras e esse gesto gera uma comoção interior que abala o estuque e as janelas. Nunca nada é indiferente ao silêncio, a um corpo que se prontifica ao silêncio, a uma manhã que não amanhece. Nem triste chega a ser. A tristeza é do porte de uma ferida sarável; já o silêncio é do tamanho das montanhas onde só os nossos espíritos chegaram a pousar. É a tal glória, entre a miséria e a festa, um manto enfeitando-nos de uma nudez nova, brilhando sob um sol mais sombrio. É o que está por detrás das palavras de que ainda precisamos para o anunciar.

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